Lançado em 1992 (e não 1998, como muitos confundem), ‘O Último dos Moicanos’ rapidamente conquistou o status de clássico moderno do cinema histórico. Sob a direção de Michael Mann e com atuações marcantes de Daniel Day-Lewis e Madeleine Stowe, o filme transporta o espectador para a América do Norte do século 18, época em que a rivalidade entre ses e ingleses pela posse de territórios fervilhava. Mas será que essa trama tão intensa, que mistura paixões proibidas e alianças inusitadas, realmente existiu? Vamos desvendar a verdade por trás do enredo que fez multidões suspirarem — e descobrir o que, de fato, aconteceu naqueles anos turbulentos.
A história do filme: ficção e realidade entrelaçadas
Baseado no livro homônimo de James Fenimore Cooper, publicado em 1826, ‘O Último dos Moicanos’ conta a história de Hawkeye, um homem branco criado por nativos americanos que, durante a Guerra dos Sete Anos, se apaixona por Cora Munro, filha de um oficial britânico. Esse enredo romântico e heroico é pura ficção. Não há registros de um tal “último dos moicanos” que tenha se envolvido em um triângulo amoroso épico ou que tenha lutado bravamente contra os ses para proteger a dama amada.
Contudo, a ambientação do filme e a fidelidade com que Mann retratou a paisagem da época são impressionantes. Florestas densas, rios caudalosos e fortes improvisados — tudo isso ecoa o cenário real de uma América que ainda pertencia tanto aos europeus quanto aos povos nativos. Essa fidelidade cênica dá ao filme um ar quase documental, ainda que o romance central seja puramente literário.
A Guerra dos Sete Anos: um conflito real que moldou continentes
Se a história de amor de Hawkeye e Cora não ou de invenção, a guerra em que estão envolvidos, por outro lado, foi muito real. A Guerra dos Sete Anos (1756–1763) foi o primeiro conflito verdadeiramente global, envolvendo não apenas as potências europeias na Europa, mas também suas colônias na América e até mesmo possessões na Ásia.
Na América do Norte, esse conflito ficou conhecido como a Guerra Franco-Indígena. ses e ingleses disputavam territórios férteis e estratégicos, como a bacia dos Grandes Lagos e o vale do rio Ohio. Em meio a essa briga de gigantes, as tribos nativas americanas viram oportunidades para proteger seus interesses, muitas vezes aliando-se ora aos ses, ora aos ingleses, de acordo com as vantagens oferecidas.
A Batalha do Fort William Henry: a conexão mais próxima com a história
Um dos momentos cruciais do filme se inspira em um evento real: a Batalha do Fort William Henry, ocorrida em 1757. Nesse episódio, tropas sas lideradas por Louis Joseph de Montcalm sitiaram o forte britânico comandado por George Munro — sim, o mesmo nome que Cooper e o filme homenagearam em sua ficção.
Após dias de cerco, Montcalm ofereceu termos honrosos de rendição aos britânicos. Mas, quando os soldados derrotados marchavam para longe do forte, guerreiros aliados aos ses, insatisfeitos com a clemência do general, atacaram a coluna britânica, matando e capturando vários sobreviventes. Esse massacre — e a tentativa de Montcalm de contê-lo — são parte real da história e ganharam contornos ainda mais dramáticos na tela.
As imprecisões do filme: onde a imaginação superou a realidade
Apesar de usar essa batalha como inspiração, o filme toma liberdades consideráveis. Segundo a historiadora Joyce Appleby, a ideia de que os colonos britânicos já tramavam a independência da Grã-Bretanha nesse período, por exemplo, não condiz com a realidade. A rebelião contra o domínio britânico só se consolidaria mais de uma década depois, com a Revolução Americana.
Além disso, o filme exagera nas tensões entre oficiais britânicos e colonos. Na prática, a sociedade colonial estava muito mais focada em sobreviver às disputas locais do que em iniciar um movimento de ruptura com Londres. Essas nuances são importantes para separar o mito do fato — e demonstram como o cinema, por vezes, escolhe caminhos mais “cinematográficos” do que rigorosamente históricos.
Por que o filme ainda encanta?
Mesmo que não seja um relato fiel dos acontecimentos, ‘O Último dos Moicanos’ encanta por sua atmosfera épica e pelos dilemas morais que apresenta. O personagem Hawkeye, um homem que transita entre duas culturas, representa o elo perdido entre europeus e povos nativos — e um símbolo do que poderia ter sido uma convivência pacífica, mas que acabou sendo marcada por conflitos e destruição.
A trilha sonora arrebatadora, as paisagens de tirar o fôlego e a força das atuações criam uma experiência imersiva. E o filme também serve como porta de entrada para quem quer saber mais sobre um período fascinante da história, quando a América do Norte ainda estava sendo moldada por interesses tão distintos quanto ses, ingleses e indígenas.
O legado de James Fenimore Cooper
Vale destacar que o romance original de Cooper, ainda que repleto de estereótipos que hoje soam antiquados, foi um dos primeiros a tentar retratar a complexidade das relações entre colonos e nativos. Para muitos estudiosos, ‘O Último dos Moicanos’ marca o nascimento do romance de fronteira nos Estados Unidos, um gênero que tentava capturar a vida em um território em formação — e que também serviu de base para muitos outros filmes e livros que vieram depois.
Mito e memória
‘O Último dos Moicanos’ pode não contar uma história verídica de amor e coragem, mas oferece um retrato poderoso de um capítulo real da história. Ao misturar eventos reais com personagens inventados, o filme cria uma ponte entre ado e presente, convidando o público a refletir sobre o preço das disputas territoriais e o choque de culturas que moldou as Américas.
No fim, permanece a pergunta: quanta liberdade o cinema deve ter para transformar história em arte? A resposta, como sempre, depende do que cada um espera de uma boa narrativa: rigor factual ou emoção épica. E ‘O Último dos Moicanos’ entrega ambos — ainda que em doses desiguais.