Ferramentas feitas de ossos de baleia revelam ingenuidade de caçadores paleolíticos

Há cerca de 20 mil anos, o litoral do que hoje corresponde ao norte da Espanha e sudoeste da França era marcado por condições climáticas extremas. Na transição final da última Era Glacial, enormes corpos de baleias ocasionalmente encalhavam nessas praias. Sem técnicas de navegação ou armamentos para caçá-las em alto-mar, os humanos da época não provocavam a morte desses colossos marinhos — mas sabiam exatamente como aproveitá-los.

Um estudo conduzido por Jean-Marc Pétillon (CNRS) e Krista McGrath (ICTA-UAB), publicado na revista Nature Communications, revelou a mais antiga evidência de uso de ossos de baleia como ferramenta humana. Os autores documentaram achados feitos entre 14.000 e 20.000 anos atrás em 26 sítios arqueológicos da região do Golfo da Biscaia, onde caçadores-coletores do período magdaleniano transformavam ossadas desses animais em utensílios de alta complexidade.

As baleias encalhadas como recurso estratégico

Embora não existam sinais de que os humanos daquela época caçavam baleias diretamente, os pesquisadores apontam que ossos de pelo menos cinco espécies foram aproveitados: cachalotes, baleias-cinzentas, baleias-azuis, baleias-fin e baleias-francas. A análise ZooMS (Zooarqueologia por Espectrometria de Massas) foi essencial para confirmar a origem dos 173 fragmentos estudados — dos quais mais de 130 pertenciam a cetáceos.

Surpreendentemente, os cachalotes foram a matéria-prima preferida para a produção de pontas de lança e hastes. Seu maxilar longo e reto fornecia um osso ideal, resistente e fácil de esculpir. Em algumas áreas, mais de 70% das ferramentas de projéteis foram feitas com ossos de cachalote, indicando uma escolha deliberada, técnica e estratégica dos materiais encontrados.

Ferramentas feitas de ossos de baleia revelam ingenuidade de caçadores paleolíticos
Objetos trabalhados e fragmentos ósseos não trabalhados. Foto: Harrygouvas na Wikipédia grega/ Atribuição

Ferramentas que falam da costa, do clima e da cultura

Além da sofisticação na escolha dos ossos, as análises isotópicas mostraram que essas baleias se alimentavam de forma muito semelhante às atuais, mesmo vivendo em um ambiente glacial que hoje lembra mais o mar Ártico do que o Atlântico. Isso sugere que as baleias migravam para a costa europeia com frequência, tornando esses encalhes menos acidentais do que se pensava.

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Essas ferramentas foram usadas na caça a animais como renas, bisões e antílopes-saiga, todos extintos da Europa Ocidental nos dias atuais. Segundo Pétillon, o conhecimento sobre os encalhes de baleia provavelmente circulava entre os grupos humanos por meio de redes sociais rudimentares e sinais naturais, como o cheiro dos corpos, o que provocava mudanças sazonais de deslocamento para aproveitar esses grandes recursos.

Além da utilidade prática, os achados lançam luz sobre a cosmovisão dos povos magdalenianos, que não viam a carcaça de uma baleia apenas como comida ou ferramenta, mas como algo de significado. Esses grupos, já conhecidos por suas pinturas rupestres, dominavam técnicas de entalhe ósseo com precisão, e suas redes de troca podiam transportar essas ferramentas para o interior, ampliando o valor simbólico e econômico desses artefatos.

O declínio no uso de ossos de baleia após 16 mil anos atrás ainda é um enigma. Os pesquisadores cogitam desde mudanças nas tradições culturais, submersão de assentamentos costeiros até o colapso de rotas de troca. O certo é que o vínculo com o mar foi forte, oportuno e intencional — um relacionamento moldado mais pela convivência do que pela dominação.

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