Em um mundo onde o feed infinito consome horas e a agenda transborda de compromissos, a leitura se tornou um pequeno luxo – e, ao mesmo tempo, um ato de resistência. A frase que ecoa entre leitores experientes não é apenas um bordão: “A vida é curta demais para livros ruins e longa demais para ignorar os bons.”
E como separar o joio do trigo quando a avalanche de novidades parece engolir até os grandes clássicos? Uma resposta confiável, embora não infalível, são os prêmios literários. Eles não são um selo mágico de qualidade – afinal, o gosto pessoal tem sempre a última palavra –, mas oferecem pistas valiosas de que ali pode haver algo que transcenda o mero entretenimento.
No palco dos prêmios, só sobrevivem obras que conseguem, de alguma forma, tocar as cordas mais íntimas do leitor. São narrativas que fogem do comum, que não apenas contam uma história, mas a transformam em uma experiência sensorial e emocional. Livros que resistem ao tempo, à crítica e à indiferença, provando que literatura ainda é um território onde a complexidade da vida encontra morada.
E não é exagero dizer que esses livros que venceram prêmios relevantes nos últimos dez anos são mais que títulos de prestígio: são convites a pausas necessárias, viagens internas e questionamentos profundos. Eles dialogam com dilemas universais e, mesmo quando falam de lugares distantes, encontram eco em quem os lê – seja em uma madrugada de insônia, seja em um intervalo rápido do dia a dia.
Os Vagantes (2018), Olga Tokarczuk
Com seu olhar poético e destemido, a polonesa Olga Tokarczuk entrega uma obra que desafia a linearidade narrativa e celebra o movimento constante da vida. “Os Vagantes” é uma colcha de retalhos literária onde personagens cruzam fronteiras, colecionam histórias e, acima de tudo, carregam a inquietação de quem busca pertencimento em cada novo destino.
O livro, que venceu o Prêmio Man Booker International, não se rende a respostas fáceis. Ele eia entre aeroportos, estradas e hotéis como quem revisita memórias, e faz do deslocamento um convite à introspecção. Nas mãos de Tokarczuk, a errância ganha contornos filosóficos: afinal, quem somos nós, senão ageiros em trânsito pelas incertezas do mundo?
A Mais Recôndita Memória dos Homens (2021), Mohamed Mbougar Sarr
Quando Mohamed Mbougar Sarr mergulhou no mistério de um autor africano desaparecido, ele não imaginou que o resultado seria uma obra tão cheia de camadas quanto um palimpsesto literário. “A Mais Recôndita Memória dos Homens”, vencedor do Prêmio Goncourt, é um romance que desafia as noções de autoria, verdade e mito.
A jornada do jovem escritor senegalês que atravessa Dakar, Paris e Buenos Aires à procura de um livro perdido se desdobra em reflexões sobre o legado colonial, a criação artística e a eterna busca por reconhecimento. É literatura que respira história e questiona a própria essência de escrever: por que escrevemos? Para quem? E o que resta quando as vozes se perdem no eco do esquecimento?
Os Testamentos (2019), Margaret Atwood
Quando Margaret Atwood decidiu revisitar o universo distópico de Gilead, quinze anos após “O Conto da Aia”, ela não entregou apenas um epílogo, mas um novo prisma sobre o poder, a resistência e a redenção. Em “Os Testamentos”, que dividiu o Prêmio Booker, três mulheres contam suas versões – e seus silêncios – sobre a teocracia que sufoca o livre-arbítrio.
A escrita cortante de Atwood não perde fôlego ao expor os bastidores de um regime que, apesar de fictício, reverbera em tantas realidades. A cada página, a autora nos lembra que a liberdade é uma chama que insiste em arder, mesmo sob o jugo mais opressor.
A Vegetariana (2015), Han Kang
Poucos livros conseguem ser tão perturbadores e delicados ao mesmo tempo. “A Vegetariana”, da sul-coreana Han Kang, premiado com o Man Booker International, começa com um simples gesto – uma mulher decide parar de comer carne – e se desdobra em um abismo psicológico. Dividido em três perspectivas, o romance expõe as fissuras de uma família e as zonas cinzentas entre sanidade e loucura, desejo e violência.
É um convite a olhar para as escolhas radicais que fazemos (ou somos obrigados a fazer) e para os limites invisíveis que, às vezes, sufocam mais que qualquer grilhão físico.
O Avesso da Pele (2020), Jeferson Tenório
Ao narrar a jornada de um filho que perde o pai para a violência policial, Jeferson Tenório não entrega apenas uma história de dor. Em “O Avesso da Pele”, que venceu o Prêmio Jabuti, o autor ergue um espelho para a sociedade brasileira – um espelho que reflete racismo, desigualdade e as muitas formas de resistência.
Com uma prosa ao mesmo tempo suave e cortante, Tenório costura as memórias do protagonista como quem tenta remendar uma identidade esgarçada pela brutalidade do mundo. Não é só um livro sobre racismo; é um livro sobre a urgência de existir com dignidade.
Correntes (2017), Olga Tokarczuk
Sim, Olga Tokarczuk aparece duas vezes nesta lista – e com razão. “Correntes” (ou “Flights”, em sua versão original) é uma obra que desafia definições: romance, ensaio filosófico, coleção de fragmentos? Talvez seja tudo isso e mais.
A autora investiga a obsessão humana por mover-se, seja para fugir, para buscar ou simplesmente para existir. A cada página, a noção de identidade se desfaz e se recompõe, lembrando-nos que somos feitos de deslocamentos, perdas e reinvenções. E que, como corpos e crenças, nada permanece fixo por muito tempo.
Noite da Espera (2017), Milton Hatoum
Na Brasília dos anos 1970, um adolescente se vê obrigado a viver num internato, enquanto o país mergulha no autoritarismo. Milton Hatoum, com sua escrita lírica e contida, constrói em “Noite da Espera” não apenas um romance de formação, mas um silencioso das angústias de uma geração.
É o primeiro volume de uma trilogia que se recusa a oferecer soluções fáceis, preferindo a complexidade dos afetos e a sutileza dos silêncios. Hatoum nos mostra que crescer, às vezes, é aprender a conviver com a dor que não tem nome.
Sete livros, sete mundos – cada um, um convite para sair do lugar-comum e entrar em territórios onde a literatura é mais que palavra impressa: é experiência, é provocação, é fôlego de vida.
Em tempos em que a atenção é moeda rara e a ansiedade insiste em nos roubar a paz, esses títulos premiados lembram que a leitura ainda pode ser um porto seguro, uma ponte para outros olhares e, quem sabe, uma chance de nos reconhecermos nas histórias que contam.
A vida é curta demais para desperdiçar em livros que não dizem nada. Mas, quando encontramos aqueles que têm algo a dizer, a vida se expande. E é aí que a mágica acontece.